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O combate à violência doméstica também é uma questão de proteção social.

STF decidiu que vítimas de violência doméstica e familiar terão direito a benefício previdenciário ou assistencial nos meses de afastamento determinados por medida protetiva.

A cada dia presenciamos mais cenas de horror contra a vida das mulheres e em meio a um cenário brutal que acompanhamos nas últimas semanas, o STF decidiu, em decisão unânime, que vítimas de violência doméstica e familiar que precisarem se afastar das suas atividades habituais, conforme determinado em medida protetiva, terão direito a benefício previdenciário ou assistencial.

A decisão resolve uma celeuma que atravancava a aplicação dessa importante parte da Lei Maria da Penha desde sua publicação, em 2006. Até agora, quando uma mulher recebia medida protetiva determinando seu afastamento do trabalho, começava um calvário jurídico: quem deveria pagar? Qual juízo era competente? O INSS poderia ser obrigado sem ser parte do processo? Essas perguntas geravam insegurança, demora e, muitas vezes, deixavam mulheres sem qualquer proteção econômica justamente no momento mais vulnerável.

A Lei Maria da Penha sempre previu, em seu artigo 9º, a possibilidade de afastamento do trabalho como medida protetiva. O problema era que essa previsão permanecia incompleta, pois havia o direito de se afastar, mas não a garantia de manutenção da renda. 

Benefício previdenciário ou assistencial

A tese fixada pelo STF organiza toda a estrutura de proteção, distinguindo duas situações:

Para empregadas (CLT), contribuintes individuais, facultativas ou seguradas especiais, o benefício tem natureza previdenciária. O empregador, quando há, arca com os primeiros 15 dias de afastamento e, a partir daí, o INSS assume o pagamento. Se não houver empregador, o INSS cobre todo o período. E atenção: independentemente de carência. A mulher não precisa ter contribuído por meses ou anos para ter direito, a proteção é imediata.

Para vítimas que não tem vínculo com a Previdência, o benefício assume caráter assistencial, nos termos da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). Nesse caso, o juízo precisa atestar que a mulher não tem outros meios de prover sua subsistência, e o Estado assume integralmente a responsabilidade pelo pagamento.

Essa distinção é fundamental porque amplia drasticamente o alcance da proteção: não importa se a mulher tem carteira assinada, se contribui para o INSS, se é autônoma ou está desempregada. Haverá cobertura. A natureza do benefício em tese muda conforme a situação, mas a proteção está garantida.

O juiz da medida protetiva determina o pagamento

Outro ponto crucial da decisão é o fim da disputa de competência entre Justiças estadual e federal.

O STF estabeleceu que o juiz estadual responsável pela aplicação da Lei Maria da Penha, tem competência para fixar a medida protetiva de afastamento do trabalho e para determinar o pagamento da prestação pecuniária, ainda que o cumprimento fique sob responsabilidade do INSS ou do empregador.

Antes, o INSS argumentava que apenas a Justiça Federal poderia determinar o pagamento de benefícios previdenciários ou assistenciais. Na prática, isso significava que a mulher precisaria de um segundo processo, em outra vara, para conseguir a garantia de renda, um obstáculo que tornava a medida protetiva quase inviável.

Agora, no mesmo processo em que recebe a medida protetiva de afastamento, a mulher deve ter a determinação de pagamento. O juiz que concede a proteção também determina o recurso econômico que viabiliza essa proteção. 

A Justiça Federal só será competente posteriormente, caso o INSS queira ajuizar ação regressiva contra o agressor para ressarcir os valores pagos, o que é outra discussão, que não afeta a vítima.

Um marco que encerra quase 20 anos de empurra-empurra

A Lei Maria da Penha completou quase duas décadas como uma das legislações mais avançadas do mundo no enfrentamento à violência doméstica e familiar. Mas sua aplicação, na hipótese da necessidade de afastamento, sempre esbarrou nessa contradição: como proteger efetivamente a vítima se ausentes meios de subsistência?

De certa forma, a lacuna reproduzia a própria manutenção da situação de violência por necessitar de meios para garantir sua subsistência e de seus filhos. 

Demos um passo importante ao se reconhecer que a dimensão econômica é indissociável da proteção integral, com instrumentos práticos para que essa dimensão seja garantida.

O que muda na prática

A partir de agora, quando uma vítima precisar se afastar do trabalho, conforme determinado por medida protetiva:

  1. O juiz da medida protetiva deve determinar o afastamento e o pagamento, no mesmo processo;
  2. Se a vítima é empregada (CLT), o empregador paga os primeiros 15 dias e o INSS assume o restante, sem exigência de carência;
  3. Se não há empregador, o INSS paga desde o início;
  4. Se a vítima não é segurada, o benefício é assistencial, custeado pela Assistência Social, desde que comprovada a vulnerabilidade.

Não há mais margem para o INSS alegar incompetência do juízo ou ausência de previsão legal. Não há mais espaço para que a mulher fique desprotegida economicamente enquanto tenta se proteger física e psicologicamente.

A decisão tem repercussão geral, o que significa que todos os tribunais do país deverão seguir esse entendimento. É uma mudança que representa um desfecho importante para um dos ciclos de proteção previstos na Lei Maria da Penha.

Um suspiro em tempos sombrios

Diante da onda de violência que tem chocado o país, decisões como essa são fundamentais. Elas não apagam a dor, não revertem as tragédias, mas constroem instrumentos concretos de proteção. Mostram que as instituições devem responder à altura da gravidade do problema.

Após anos de debates, incertezas e lacunas, o STF disse: proteger uma vítima de violência doméstica e familiar significa também garantir que ela possa se afastar sem perder sua subsistência. E essa proteção não pode depender de labirintos burocráticos ou disputas entre instituições, ela precisa ser imediata e efetiva.

É apenas um passo, mas importante passo. E já era tempo.

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