Está sendo noticiada uma decisão da 2ª Turma Recursal de Santa Catarina, de julho deste ano (2023), que reconheceu o direito ao Auxílio por Incapacidade Temporária a uma mulher, segurada facultativa, contrariando parecer médico que considerou não haver incapacidade para o exercício das tarefas domésticas.
A importante decisão representa exemplo interessante de aplicação do Protocolo de Perspectiva de Gênero do CNJ! Esse protocolo é de observância obrigatória desde março deste ano, 2023, em todos as esferas do Poder Judiciário do país, tendo por finalidade capacitar e orientar a magistratura para a realização de julgamentos, com base em diretrizes que levem em conta questões de gênero nas decisões judiciais.
No caso, a primeira instância negou o direito ao Auxílio por Incapacidade Temporária à segurada facultativa, considerando que esta não estaria incapacitada para as atividades domésticas. Isso te causa espanto?
Com base na aplicação do referido Protocolo, a decisão em segunda instância considerou que mesmo sendo as atividades habituais da segurada aquelas relativas ao trabalho doméstico, deve-se considerar a incapacidade a partir das limitações para tais atividades, independentemente da sua natureza.
É uma decisão importante que abarca a situação de uma mulher que, segundo se extrai da decisão, realizava tarefas domésticas, tendo a sua incapacidade sido analisada sob esse prisma, inclusive na decisão de segunda instância que aplicou o Protocolo e foi favorável à concessão do benefício.
De todo modo, gostaria de trazer um olhar complementar à questão, especialmente quanto à qualidade de segurado facultativo e ao benefício por incapacidade.
Inicialmente, importa esclarecer que Auxílio por Incapacidade Temporária é devido ao segurado da Previdência Social que, cumprida a carência, esteja incapacitado para o seu trabalho ou para a sua atividade habitual. Entre os segurados da Previdência está o segurado facultativo, que é todo aquele que, não se enquadrando na condição de segurado obrigatório (como, por exemplo, o trabalhador empregado ou o contribuinte individual), se filie ao Regime Geral de Previdência Social mediante o pagamento de contribuições.
Essa explicação é importante para evidenciar que o equívoco envolvendo a questão já se inicia muito antes. É extremamente comum e normalizado, especialmente na rotina das agências do INSS, que a figura do segurado facultativo seja considerada como sinônimo de “dona de casa”, “do lar”, o que é extremamente problemático, no mínimo por dois motivos:
1) restringe-se o alcance da condição do segurado facultativo, conspirando contra a política de inclusão previdenciária que fundamentou a criação dessa categoria de segurados;
2) atribui-se e naturaliza-se um lugar social às mulheres, como sendo o do trabalho doméstico e de cuidados.
Abrindo um parênteses, quando atuava na advocacia previdenciária enfrentei dificuldades para, por exemplo, atualizar o cadastro de um cliente homem, segurado facultativo, considerando a resistência e má compreensão do servidor do INSS acerca de uma impossibilidade de enquadrá-lo como “dona de casa”.
O fato é que segurado facultativo não é sinônimo de “dona de casa”, mulheres que sãos seguradas facultativas não devem ser apontadas como “do lar” ou “dona de casa”, pois essa delimitação reproduz uma prática de direcionamento das mulheres ao ambiente privado e doméstico, um lugar de realização “natural” das atividades reprodutivas, além disso, não traduz o que vem a ser o segurado facultativo.
A decisão é um exemplo evidente de um dos problemas que esse tratamento da questão pode ocasionar. A incapacidade para o trabalho ou atividades habituais de uma mulher que é segurada facultativa não pode se restringir a possibilidade ou não de realizar atividades domésticas e de cuidados, deve-se avaliar a condição de doença e incapacidade de forma analítica, vislumbrando as suas limitações para a prática dos atos de sua vida cotidiana, pois se assim não for feito e interpretado, continuarão sendo utilizados estereótipos de gênero para restringir o acesso a direitos pelas mulheres.
Para ficar mais óbvio o problema. Suponhamos que na hipótese desse requerimento de Auxílio por Incapacidade Temporária não se tratava de uma mulher, mas de um homem, segurado facultativo, ou seja, que não exerce atividade remunerada, porém contribui para a Previdência Social. A perícia médica e o magistrado de primeira instância chegariam as mesmas conclusões? Ou seja, não reconheceriam a incapacidade para o trabalho ou atividades habituais do homem em razão de não estar impossibilitado de realizar as atividades domésticas e de cuidados? Óbvio que esse não seria o parâmetro!
Então, utilizar tal parâmetro, que se inicia com a confusão sobre segurado facultativo como sinônimo de “dona de casa”, se revela como um componente de discriminação de gênero, na medida em que abre-se caminho para restringir o direito das mulheres ao benefício em questão com base em uma concepção pejorativa construída sobre a questão de gênero.
Links úteis:
Protocolo de Perspectiva de Gênero do CNJ, acesse!
Inteiro Teor da decisão, veja!
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